População recorre cada vez mais a soluções judiciais para garantir seus direitos na área. Representantes do setor e Judiciário dialogam para pareceres mais técnicos
Por GIORGIA GSCHWENDTNER
Em quase 30 anos da criação da Constituição Federal de 1988, a consciência social sobre os direitos individuais e sociais e sobre a possibilidade de sua reivindicação por meio do Poder Judiciário resultam no total de 102 milhões de processos em tramitação. Os dados são referentes ao relatório Justiça em Números 2016, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir da base de dados do ano de 2015, enquanto no levantamento anterior o número era de 100 milhões de ações.
A natureza dos processos é diversificada e crescente na área do Direito à Saúde, considerando que a Carta Magna inaugurou o Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, consagrando a prestação de serviços de saúde como um direito dos brasileiros. Segundo os dados do CNJ, são mais de 850 mil processos ajuizados até 2015 nesse segmento, número expressivo em comparação a 2011 (240.980) e 2014 (392.921).
Desse total, 355 mil são de ações diretamente relacionadas aos serviços de saúde e aos planos de saúde (Direito do Consumidor). Na avaliação do desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, João Pedro Gebran Neto, esse cenário se constituiu porque as pessoas começaram a buscar o cumprimento das promessas constitucionais, de uma prestação adequada de serviços, pela via judicial. “A junção do aumento das reivindicações sociais sobre tema tão delicado, com o entendimento judicial de outorga desses direitos, a despeito da política da administração pública, acabou fomentando que os indivíduos buscassem a tutela judicial para receber a prestação sanitária que lhe era prescrita por mé- dicos, estando ela contemplada, ou não, na política pública. De outra banda, o Poder Judiciário passou cada vez mais ampliar as políticas de saúde, dada a sensibilidade do direito à vida”, avalia.
IMPACTOS
Com isso, a Justiça também acabou se tornando o canal de liberação e/ou autorização de materiais e medicamentos importados, não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), experimentais, expressamente excluídos dos contratos, não contemplados no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo o gerente de Assuntos Jurídicos da Unimed do Estado do Paraná, Mauro Cezar Abati, o principal argumento das alegações judiciais são de que “foram solicitados pelo médico assistente”, que “a este cabe todo o direito de saber o que é melhor para o seu paciente” e, na maioria das vezes, são gravadas com as palavras urgência ou emergência”.
Em muitas situações, Abati relata que os pareceres têm inclusive tomado como base o Código de Defesa do Consumidor (CDC). “Nas ações, os juízes têm se baseado no CDC para argumentar que o plano, ao negar a assistência, descumpre o principal objetivo do contrato, que é a manutenção da saúde do beneficiário”, comenta. E destaca que essa situação também está atrelada à complexidade técnica dos pedidos para o magistrado, que não tem nenhuma obrigação de ter conhecimento científico do tema, especialmente quanto à pertinência do pedido. “Ocorre que ele acaba ‘refém’ de petições que indicam urgência, emergência, risco de morte, danos irreparáveis (materiais e morais), etc., na liberação de determinado procedimento, material ou medicamento.
E assim, opta, justificadamente, pela expedição da liminar, deixando que o mérito seja discutido posteriormente”, analisa. O que no caso das seguradoras acaba tendo um impacto financeiro bastante prejudicial. “A maioria das determinações de pagamento são obtidas via liminar que, nesse caso, é quase uma sentença. Dessa forma, após a sua satisfação, resta à operadora somente a busca do ressarcimento que, em virtude dos valores absurdos, tem sido praticamente impossível de ser conseguido. Isso sem considerar as concessões indevidas da gratuidade processual, o que impossibilita, quase definitivamente o ressarcimento”, destaca Abati, que aponta ainda que a situação acaba ampliando as taxas de cobrança dos beneficiários, por ser única fonte de recursos das operadoras, e poderá resultar na total inviabilização da saúde suplementar no país.
MELHORIAS
Diante dessa realidade, o CNJ, em parceria com o Ministério da Saúde e outras instituições, elaborou um projeto com o objetivo de capacitar os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), vinculados aos tribunais, para subsidiar os magistrados de todo o país em ações judiciais na área de saúde. “A intenção é criar um banco de dados à disposição dos magistrados, a partir dos laudos produzidos pelos NAT-Jus, com análises baseadas em evidências científicas. Assim, as decisões estarão respaldadas muito mais nos aspectos técnicos do que em situações pessoais e/ou sociais”, explica o gerente de Assuntos Jurídicos da Unimed PR. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) está analisando duas questões relacionadas à judicialização da saúde – termo designado para classificar os elevados nú- meros de processos na área – com a discussão sobre os chamados medicamentos de alto custo e a possibilidade, ou não, de outorga de medicamentos não-registrados na Anvisa, segundo Gebran Neto. “Com isso, está buscando adicionar ao tema uma adequada racionalidade acerca da evidência científica. As orientações a serem firmadas pelo STF, somadas à iniciativa do CNJ, darão novos caminhos à judicialização da saúde”, reforça o desembargador, que acredita que embora os votos dos Ministros no STF tenham divergências, são uníssonos quanto à necessidade de haver melhor racionalidade sobre o tema. Tendo em vista o número de processos em trâmite, os valores financeiros e, principalmente os bens envolvidos nesse assunto, quais sejam, a integridade física, a saúde e a vida, não resta dúvida de que há necessidade da criação de varas especializadas no assunto saúde, para dirimir as ações, tanto no Setor Público quanto no Privado. “Percebemos que juízes e operadores do Direito que travam maior conhecimento com a matéria possuem uma visão mais clara, objetiva e realista, distanciando-se dos demais que apenas superficialmente a conhecem, ficando estes mais atrelados ao relacionamento consumerista e totalmente à mercê da solicitação do médico assistente. Somente com juízes especializados e com dedicação exclusiva, que lhes permita o indispensável aprofundamento técnico, poderá ser dada a celeridade necessária e o devido embasamento nas decisões”, conclui Abati. No dia 30 de agosto, reuniram-se pela primeira vez representantes das várias esferas do Judiciário, do Ministério Público, de entidades médicas e das operadoras de planos de saúde para tratar a judicialização exclusivamente da Saúde Suplementar. A iniciativa é parte do Comitê Executivo de Saúde da Justiça Federal, coordenado pela juíza federal Luciana Veiga Oliveira.
FONTE: Revista Ampla